No mercado de café tradicional, tudo costuma ser igual. Mas, aos poucos, os brasileiros estão descobrindo o sabor do café especial, com grãos selecionados, colhidos manualmente e que fornecem uma bebida com sabor e acidez equilibrados. Uma pequena cidade cravada no topo da Chapada Diamantina, na Bahia, é a joia desse novo roteiro.
José Joaquim, 58, desce os barrancos de sua roça, a Cafundó, com um balde, que chama de peneira. Embrenha-se entre as folhas verdes para pegar o pequeno fruto vermelho, que chama de joia. “Vê todas as montanhas ao redor?”, diz, apontando para o relevo acidentado que nos apequena. “Estamos no meio de um garimpo”. E some na vegetação, legando ao ouvinte a real condição geográfica: Piatã, cidade a 1.300 metros de altura, onde o ouro brota como fruta.
A dádiva atende como café. Mas não qualquer. Muito acima do café comum, consumido pela maioria dos brasileiros, e um pouco acima do café fino, já metido em melhores condições, o café especial é o que nasce em Piatã. “Café é igual a carro. Não tem BMW, Mercedes e Fusca? Pois café é a mesma coisa”, explica Joaquim, de dentro da plantação, pontuando a frase com uma risada. E segue a explanação. “Todo café, na natureza, tem 100 pontos. A partir do momento em que você tira do pé, ele pode se tornar um produto péssimo ou um produto rico, como esse que a gente garimpa por aqui”.
Nobreza
O café especial tem mesmo muita nobreza. Cultivado em pequenas propriedades, sobretudo no interior da Bahia, de São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais, é um grão que produz bebidas aromáticas e sem amargor. O café especial de Piatã, no entanto, é de uma majestade sem fim. Na última edição do maior concurso brasileiro dedicado ao segmento, o Cup of Excellence, em 2016, a cidade fez as nove primeiras posições – e dos 25 lotes premiados, 19 foram de Piatã. Algo que os moradores da cidade chamam de “sortezinha” e “presentinho”, puxando o diminutivo tal qual fazem os mineiros.
Cravada no topo da Chapada Diamantina, a quase 600 quilômetros de Salvador, Piatã é uma cidade que se comunica muito mais com a condição sertaneja de outras terras colonizadas por bandeirantes – Minas Gerais, São Paulo e Goiás – do que com a própria Bahia. Muitos moradores passam a vida sem ir a Salvador, embora conheçam de cor logradouros paulistas e mineiros. O sotaque é manso e o clima inverte a lógica das terras secas que margeiam o município. Nas noites de inverno, chega-se a dez graus com facilidade.
“Temos altitude, clima e água mineral”, diz Antonio Rigno, 67, propagandeando a forma como os frutos maduros são lavados. O poço mineral perfurado em sua propriedade de 80 hectares (o equivalente a 80 campos de futebol), um latifúndio para os padrões da região, mas um pedaço de terra ainda miúdo perto do agronegócio brasileiro, garante “a melhor água para o melhor café”, como define o proprietário. Em 2014 e 2015, o Café Rigno foi eleito o melhor do país.
Joia da Chapada
Piatã, na Chapada Diamantina, abriga os melhores cafés especiais do Brasil
Com uma voz que é quase um sopro, fruto de um problema nas cordas vocais que o acompanha desde menino, Antonio Rigno é um pioneiro na produção de café especial na região. Toca sua fazenda (dividida entre as chácaras Ouro Verde e São Judas Tadeu) com a família. Filho e neto de agricultores, ele comprou sua terra em Piatã nos anos 1970 e diz ter feito “tudo de errado naquele tempo”. “Informação é coisa valiosa e quem tem está bem. Mas quem disse que informação chega de graça? Só chega depois do suor”.
A informação a que Rigno se refere diz respeito ao caminho para fazer com que o café seja capaz de encantar especialistas em concursos e estrangeiros aficionados. Capaz de se diferenciar da bebida produzida com o pó comumente vendido em mercados nas grandes cidades. Como colher, como secar, como torrar? Detalhes que as maiores marcas do ramo desconsideram, mas que no reino dos cafés especiais fazem toda diferença.
A primeira informação surge na colheita. Como toda fruta, o café atinge seu melhor sabor quando está maduro. Frutos ainda imaturos ou passados produzem sabores desagradáveis na bebida. A colheita seletiva e manual é o método mais trabalhoso e o mais utilizado em Piatã. Apenas os frutos maduros, conhecidos como cerejas pela sua cor vermelho-rubi, são coletados – cafés colhidos com máquinas, em que todos os frutos do galho são arrancados de uma só vez, tendem a produzir lotes inferiores, pois uma grande quantidade de frutos verdes é colhida, conferindo um sabor áspero à bebida.
Uma nova informação vem no processo de secagem, onde um bom terreiro é necessário. Os melhores cafés são produzidos em terreiros de cimento limpos, sem rachaduras e com estufas que protegem os grãos da chuva e do sereno da noite. O mais importante para se obter alta qualidade é garantir a desidratação dos frutos sem que eles fermentem, um processo que demora de 10 a 20 dias. Caso o café fermente durante a secagem, irá apresentar um sabor de remédio, comum aos lotes vendidos em supermercados.
E ainda há a arte da torra, a informação derradeira no processo e que pode pôr tudo a perder. É na torra que as substâncias presentes no grão cru se desenvolvem. E a torra em excesso não é um bom sinal. A torra média, que deixa os grãos morenos, preserva os aromas e produz uma bebida suave. Ao avançar para a torra escura, os açúcares e óleos entram em processo de carbonização, criando uma bebida de sabor amargo e com gosto de fumaça.
“A torra escura mascara o sabor original dos grãos, predominando o gosto de queimado. É a torra utilizada por marcas de cafés baratos, que utilizam matéria-prima de baixa qualidade. Se você tem uma carne estragada, o que você faz para disfarçar? Deixa ela esturricada”, diz Rigno, como quem aprendeu a lição. “No mercado de café tradicional, tudo é simplesmente café e assim o brasileiro se acostumou a pensar. Mas no mundo do café há as britas e os diamantes”.
Ciência
Maior produtor de café no mundo, o Brasil tem a lavoura cafeeira dividida em dois tipos de árvore: a robusta (Coffea canephora) e a arábica (Coffea arabica). A primeira, cujo principal fruto é o café conilon, é plantada em terrenos com até 800 metros de altitude e é mais produtiva, tornando o grão competitivo na escala industrial. A segunda precisa de altas altitudes, mais cuidados e produz menos. No ramo dos cafés especiais, reina a arábica.
Embora a maior parte da produção nacional seja arábica (através de variedades como café-bourbon, catuaí ou mundo-novo), o consumo nacional é basicamente composto de café conilon misturado a outros grãos, como o milho – a legislação brasileira permite até 1% de impureza, como cascas, paus e outros grãos provenientes do cultivo. O melhor da produção nacional vai, portanto, para outros países, como Alemanha, Japão, Bélgica e Itália. Dois fatores ajudam a explicar a equação. O pagamento em moedas mais vantajosas e o fato de o público brasileiro, de forma geral, se interessar pouco por novos sabores de café.
“Pegue um grão menos nobre, colha e torre de forma agressiva e você terá o café que a maioria dos brasileiros conhece”, diz Euvaldo Jones, 37, proprietário da roça Riacho da Tapera, que produz o café Taperinha. “A forma como a indústria em torno do café se organizou no Brasil pede pressa e quantidade, e isso é incompatível com uma bebida de mais sabor. Ainda assim, se as grandes marcas quisessem, seria possível oferecer produtos de melhor qualidade”.
Professor de educação física, Jones chegou a Piatã há 13 anos, para recuperar parte da fazenda da família que estava abandonada. A ideia era “plantar o que desse e mexer aos poucos com café”, como ele diz. Um casamento, um filho e algum conhecimento sobre a lavoura depois fizeram com que ele deixasse Salvador e se mudasse de forma definitiva para Piatã, passando a investir no aprimorando dos grãos.
“É uma ciência. Cada dia uma descoberta sobre como colher, secar e torrar”, diz Jones. “E, a cada dia, mais produtores se interessam em melhorar o que produzem. Ainda tem gente na região que acha que pode colher e torrar de qualquer jeito. Mas, fazendo de qualquer jeito, você joga no mercado um produto sem diferencial, igual ao que as grandes marcas jogam por um preço bem mais baixo”.
O maior impulso para que os produtores de Piatã passem a investir em melhorias na produção é a popularização dos concursos de qualidade. Desde que as fazendas da região passaram a inscrever seus lotes no Cup of Excellence, no início dos anos 2000, o número de participantes baianos só cresce. Na edição do concurso deste ano, que ocorrerá em 29 de outubro, a cidade tem 20 amostras entre os 40 finalistas.
“O café de Piatã é produzido num lugar único, que, quando bem conduzido, torna-se imbatível”, diz Sílvio Leite, idealizador do Cup of Excellence. “Até cerca de dez anos, o Brasil era reconhecido pela exportação do café comercial. Só a partir daí é que o país passou a desenvolver as lavouras em busca dos cafés especiais, grãos selecionados, colhidos manualmente e que fornecem um café com corpo, sabor e acidez equilibrada. Piatã é uma joia nesse novo roteiro da lavoura cafeeira”.
Ver o destino
Classificador e degustador de café que percorre o país em busca dos melhores lotes, Leite nasceu em São Paulo e mudou-se para a Bahia há quase 20 anos, quando prestou serviço a um grupo português com propriedade no município de Brejões, a 300 quilômetros de Salvador. Desde então, tem ajudado os produtores locais a colocar seus nomes em cafeterias de todo o mundo.
A profissão de degustador, passada sempre de mestre para aprendiz, é artesanal. Existem cerca de 200 bons classificadores de café no mundo. Muitos deles vêm trabalhar no Brasil, tamanho volume de produção – o país é responsável por 30% do café bebido no mundo. Entre os conhecedores, comenta-se que o café é um dos poucos ramos comerciais em que falar português é vantajoso.
A participação em concursos não rende prêmios, mas habilita os produtores aos principais leilões internacionais, quase sempre realizados no mês de dezembro. No ano passado, o lote produzido na fazenda de José Joaquim, a Cafundó, tirou primeiro lugar no Cup of Excellence e, dois meses depois, a saca (60 quilos) foi arrematada por uma empresa japonesa por R$ 19 mil. Sobre o feito, Joaquim, ao modo local, põe um despojamento no rosto, diz ter tido essa “chancezinha da vida” e que aguarda o resultado do concurso deste ano para “ver o destino”.
Piatã possui aproximadamente 20 mil habitantes e 150 fazendas de café, a maioria delas com entradas margeando a BA-148, única via de acesso ao município. Embora esteja situada entre duas serras, Tromba e Santana, com picos e trilhas ao redor, a cidade não recebe tanto a atenção dos turistas, como as vizinhas que integram a região da Chapada Diamantina. Para o barista Lucas Campos, 30, essa condição deve mudar. “Com toda a publicidade que o café de Piatã vem conquistando, aos poucos as pessoas têm vindo conhecer as fazendas da região. É um turismo rural, diferente do praticado em cidades como Lençóis e Mucugê”.
Campos, formado em psicologia, mudou-se com a esposa para Piatã há três anos. Ao lado do sócio, Felipe Toé, conduz a Cafétur, especializada em montar roteiros que exploram o cultivo e a história da lavoura cafeeira. Visitas a plantações de café, extrações ao ar livre (incluindo as trilhas da cidade) e ensinamentos sobre degustação e classificação estão entre as atividades promovidas.
“Durante o passeio é possível ver como o trabalho é desenvolvido nas lavouras, acompanhar o processo de produção e entender por que o café é considerado uma das bebidas mais complexas do mundo, cheia de nuances, e não aquele líquido amargo, que tomamos por puro hábito”, diz Campos. “É curioso como o brasileiro tem fetiche por vinhos, que é uma coisa de fora, e desconhece o café, tão ligado à nossa cultura”.
Criar um movimento dedicado ao café especial, com produtores e consumidores atentos à qualidade, é uma necessidade que se escuta não apenas de fazendeiros e comerciantes, mas de profissionais liberais distantes da lavoura. É como se todos em Piatã reconhecessem a vocação da cidade para o café e visualizassem aí o caminho para o desenvolvimento.
“É um trabalho de formiga, cada dia um cliente conquistado, que chama outro cliente, e por aí vai”, diz Leonardo Bittner, 32, proprietário da Terroá, espaço especializado na torra do café. Geólogo por formação, Bittner abriu sua empresa em 2011, mas há três anos trocou Piatã pelo distrito de Vale do Capão como uma estratégia de negócio.
“Consigo pegar o fluxo intenso de turistas que chegam à Chapada através do Capão e, ao mesmo tempo, não fico longe das roças de Piatã, algo fundamental para o negócio, já que trabalho com agricultores familiares”, diz Bittner, que compra os grãos dos produtores, compõe “blends” (mistura de grãos), realiza a torra e vende para cafeterias de todo o Brasil.
Na busca por ampliar e educar a clientela, a Terroá lançou, há um ano, uma linha de cafés “de entrada”, como define Bittner. Produtos que estão no meio-termo entre o café comum e o supersofisticado e que conta com preços mais acessíveis. A ideia veio após os sucessivos reveses ao tentar comercializar cafés especiais em grandes lojas e delicatessens de Salvador.
“Quem está acostumado ao café tradicional estranha muito o especial. Estranha não ser amargo; acha que está bebendo outra coisa que não é café”, diz Bittner. “Precisamos ser mais competitivos no discurso. Mostrar que, se a pessoa quer o café como alimento, com todos os nutrientes e sabores preservados, ela não vai encontrar isso entre as marcas que dominam o mercado e que vale desembolsar um pouco mais. É uma questão de cultura. Bebemos muito café e não sabemos quase nada sobre o que consumimos”.
Labuta
O primeiro surto de produção cafeeira na Chapada Diamantina ocorreu no final dos anos 1960, quando o governo do estado incentivou produtores locais a abraçarem o clima ameno da região, propício à lavoura. Quando o poder público encerrou o programa de investimentos, em 1976, no entanto, a produção minguou. Desapareceu por completo em muitos municípios e, em Piatã, dos 100 cafeicultores iniciais, restaram apenas 20.
Um deles, Arnaldo Novais, 77, conta essa história como um alerta. “Nada é tão lustroso quanto possa parecer. E a nossa lavoura é feita de muita contenda. Quem só vê os troféus acha que tudo é festa”, diz ele, que atravessou o primeiro ciclo do café na região e agora trabalha, ao lado do filho, Anastácio, no que chama de segunda fase, iniciada há quase duas décadas com a produção de cafés especiais.
A falta de irrigação e a burocracia para conseguir financiamentos são duas queixas recorrentes entre os produtores locais. Anastácio, 35, já avisou ao pai: o próximo dinheiro graúdo que ganhar será para investir num poço de água, capaz de irrigar os oito hectares dedicados ao plantio de café.
A dupla, pai e filho, toca uma roça dentro da fazenda Santa Bárbara, uma espécie de loteamento onde coexistem 30 pequenas propriedades. É o ponto mais elevado de Piatã. Ali, é possível se perder facilmente, tamanha a quantidade de entroncamentos. Logo na entrada, o maquinário dedicado ao beneficiamento (momento anterior à torra, em que o fruto já seco é limpo e descascado), comprado por meio da vaquinha dos produtores, faz barulho e vem com uma placa que cita Gonzaga: “Quase todo mundo diz que o Brasil só é feliz se café ‘tivé valô’”.
“A vida aqui só é ruim quando não cai água no chão, mas se chover dá de tudo”, diz Anastácio, quase sacudindo o ouvinte. Embora no alto e no frio, Piatã é sertão. “O governo acha bonita a nossa história, com prêmios, levando à Bahia para o mundo. Mas cadê um plano?”. Procurada a respeito de novos incentivos para a região, a Secretaria da Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária do Estado da Bahia não retornou aos contatos da reportagem
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Doidice
É por meio da recém-criada Cooperativa de Cafés Especiais e Agropecuária de Piatã que os produtores da cidade se ajudam e trocam informações sobre a lavoura e os preços do mercado. Funcionando num armazém que outrora serviu à Cesta do Povo, os cooperados dizem querer, também, espalhar a ideia para os municípios vizinhos, como Ibicoara e Mucugê, que já começam a produzir os próprios lotes.
“Nós somos, quase todos, agricultores familiares. Os cafés que são produzidos aqui têm nome e sobrenome. Nada mais justo do que um ajudar o outro”, diz Antônio Macedo, o Zinho, um dos fundadores da cooperativa. “Já pensou que bonito não seria todo esse mundão da Chapada produzindo mais e mais café de qualidade? Eu penso nisso toda hora”.
Morador do centro de Piatã, Zinho madruga todos os dias – um hábito de vida. Veste-se e ruma para a chácara, a dez quilômetros de casa. Exceto no período de colheita forte, quando fica salpicada de “apanhadeiras”, que selecionam o fruto no pé, a fazenda de Zinho é a de um homem só. Outro dia, ele sonhou que seus pés de café tinham virado areia. Correu assustado para ver se era verdade. Ao contar a história, ri. “É bom acreditar em tudo”, diz. “Quer maior doidice do que pé de ouro no sertão?”. (Chapada News com texto do A Tarde).