Você pode fingir que não vê, pode ser o autor do abandono, pode ser aquela pessoa caridosa que acolhe e alimenta, mas independente de quem é você na fila do pão – ou da adoção – a situação do abandono de animais nas ruas de diversos municípios da Chapada Diamantina é alarmante.
Falando de animais de pequeno porte, como os cães, é fácil perceber que a população só aumenta e esse, ao contrário do que muitos pensam, é um problema de saúde pública. No Brasil, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), até 2022, já existiam cerca de 30 milhões de animais abandonados nas ruas, sendo 10 milhões de gatos e 20 milhões de cachorros.
Em Seabra, há um descontrole populacional evidente, embora até o fechamento desta matéria não tenhamos conseguido dados oficiais com a 27º Diretoria Regional de Saúde que quantifiquem essa população. Os animais de rua estão expostos a uma série de doenças, inclusive as chamadas antropozoonoses, que são doenças que podem passar, tanto do animal para o ser humano, quanto do ser humano para o animal. Raiva, leishmaniose, leptospirose, verminoses diversas, todas representam um risco aos animais e aos seres humanos, com quadros graves que podem levar à morte.
Além desse problema, os animais soltos sofrem maus tratos e representam um risco, pois sem controle, podem causar acidentes de trânsito e, a depender da natureza do animal, oferecer riscos diretos como ataques e mordidas, o que já aconteceu diversas vezes na cidade de Seabra, por exemplo. Na última segunda-feira, 18, a questão chegou ao extremo quando um motociclista morreu vítima de um acidente causado pela tentativa de desviar de um grupo de cães que corria descontroladamente na BR-242, na entrada de Seabra.
O rapaz se chocou com um dos cães e, ao perder o controle da moto, sofreu uma queda, sendo atingido por um caminhão. Uma fatalidade que poderia ter sido evitada, caso os animais não estivessem soltos na rua. Isso suscitou o debate, entre moradores da cidade, trazendo à tona a pergunta: de quem é a responsabilidade por esses animais?
Manuela Souza é veterinária há oito anos, em Seabra, e explica que não há como culpar uma pessoa, quando não se tem o controle da tutoria desses animais, o que só seria possível com microchips ou tatuagens com códigos, o que ainda é uma possibilidade distante da realidade. No entanto, ela conta que a gestão dos animais soltos na rua deve ser das prefeituras.
De acordo com Manuela, no município de Seabra, há um programa referente à leishmaniose, mas os animais seguem nas ruas, já que não há nenhum tipo de controle que tenha se mostrado efetivo. “Na logística do animal, que é questão de saúde pública, a prefeitura é a responsável. Hoje é proibida a prática de eutanásia, de sacrificar os animais, mas eles já poderiam ter intensificado o projeto de castração”, explicou. Ainda de acordo com a veterinária, a castração não é uma solução que mostra efeitos imediatos, mas a longo prazo, a população deixa de crescer e começa a diminuir consideravelmente.
“Talvez, a gente não sinta o impacto agora, de imediato, mas daqui a 3, 4 anos, veremos uma incidência muito menor na rua. O [projeto do] canil municipal está parado. Sobre esse canil, o ideal seria vir acompanhado por um projeto de lei para o cachorro ficar até passar o pós-operatório”, diz, acrescentando que a ideia do canil não é abrigar os cães de rua, mas servir como apoio para a pré e pós cirurgia.
Essa iniciativa já foi iniciada no município, mas não foi levada adiante, segundo os gestores públicos, por falta de recursos. Houve uma licitação em julho do ano passado, uma empresa foi ganhadora, mas, desde agosto de 2023 até o presente momento, apenas dez animais foram castrados. O projeto previa a castração de 360 animais por ano, já começando por 2023, porém essa realidade não se concretizou.
No entanto, não apenas a prefeitura carrega essa responsabilidade, é preciso tratar também da tutoria responsável, já que, em uma estimativa ainda sem dados oficiais, a própria Manuela afirma que metade dos animais que estão nas ruas têm dono. Nesse caso, os animais passam os dias nas ruas e, normalmente, à noite retornam para as suas casas. “Por lei, quando você pega um animal, você se torna responsável por ele, e o fato de deixá-lo na rua ou não satisfazer as suas necessidades básicas constitui maus tratos”, explica Manuela.
Iniciativa de referência
Um município chapadeiro vem se consolidando como referência no tratamento aos cachorros de rua. Trata-se de Piatã, com aproximadamente 20 mil habitantes, que é conhecido por ser o ponto mais alto do nordeste do Brasil. No entanto, não apenas as montanhas chamam a atenção por lá, o tratamento aos animais de rua também tem dado o que falar.
O programa de governo da atual gestão municipal, desde o início, incluiu os animais nas questões de saúde pública, por meio das iniciativas lideradas pela primeira-dama Ludimila Alcântara. Ludimila se diz apaixonada por animais e destaca que Piatã é pioneira no modelo de intervenção que contempla a identificação do contingente populacional e castração periódica dos animais de rua e também daqueles cujos donos não têm condição de arcar com a cirurgia.
“O primeiro passo é identificar o descontrole populacional dos animais de rua. O número excessivo de animais é um problema em boa parte dos municípios. Posteriormente, evitar que esses animais que estão na rua se multipliquem”, contou a primeira-dama.
Ela explica que uma fêmea de médio a grande porte normalmente tem dois cios por ano e que, a cada ninhada, acaba tendo em torno de 10 a 12 filhotes. “O primeiro passo é controlar isso. Castrando, eles não vão se multiplicar. E fazendo esse controle, evitamos que sejam maltratados, envenenados, atropelados, que causem acidentes, fora a questão de zoonoses”, explicou.
Piatã realiza dois mutirões de castração por ano, normalmente, em janeiro e novembro. Ela lembra que, já no primeiro mutirão, castraram 93 animais e que, atualmente, já conseguem castrar em torno de 200 animais a cada vez que a equipe, que é de fora, vai até a cidade para atender ao projeto. “Não adianta fazer uma castração no ano, parar e só voltar a fazer daqui a dois anos. Para começar, tem que ser, no mínimo, duas vezes ao ano. Enquanto tiver castrando 5 aqui, tem mais 20 entrando no cio, 30 parindo, por isso, o ideal é o mutirão.”
Para dar suporte ao processo da castração, o município tem um canil estruturado para receber os animais, realizar as cirurgias e proporcionar um pós-operatório seguro e adequado, mas Ludimila conta que, mesmo sem um canil, é possível fazer: “Já fizemos em um ginásio de esportes, colocamos os animais a uma certa distância, fizemos a castração de todos, ficaram em recuperação e depois foram devolvidos para os mesmos lugares em que eles viviam. Colocamos um colarzinho no pescoço com as informações de onde ele foi recolhido, porque quando ele vive em uma rua, normalmente ele recebe já alimento de alguém, já está habituado a viver ali.”
Ludimila costuma ser chamada para ajudar em outro municípios e conta que já esteve em Rio de Contas, Boninal e na própria Seabra, onde acompanhou um mutirão que castrou aproximadamente 200 animais. “É importante que o município faça, que o gestor se conscientize e eu me prontifico a ir nas outras cidades para dar as orientações”.
Em Piatã, além dos mutirões, são realizadas feiras de adoção e estão espalhadas pelas ruas casinhas comunitárias de madeira que servem como abrigo para os cães, além de comedouros/bebedouros em que as pessoas podem colocar ração e água. Mas a tendência é que, com o passar dos anos, seja cada vez mais raro observar animais na rua, em Piatã. “O número de filhotes a gente já viu diminuir bastante e com o tempo, vai diminuir também o número de cães adultos sofrendo, sendo atropelados ou revirando lixo”, finalizou Ludimila.
Ananda Azevedo – Chapada News, o portal de notícias da Chapada Diamantina